Evento reuniu especialistas, ativistas, escritoras e representantes de entidades públicas e privadas, na sede do Projeto Neaca Tecendo Redes, em Itaboraí
"Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto ‘amefricanas’, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo, trazemos conosco a marca da libertação de todos e todas. Portanto, nosso lema deve ser: organização já!” (Lélia Gonzalez)
Marisa Chaves (E), Eliane Arruda, Cláudia Bomfim e Natália Rocha em uma das mesas do seminário no Neaca, em Itaboraí
Cultura do ‘silenciamento’, empoderamento da mulher e combate à discriminação racial foram temas abordados no seminário ‘Protagonismo feminino e autocuidado: impactos e contribuição em rede’, que reuniu especialistas, ativistas, escritoras e representantes de entidades públicas e privadas, na sede do Projeto Neaca Tecendo Redes, em Itaboraí. O evento, realizado na última quarta-feira (21), Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, foi organizado pelo Movimento de Mulheres em São Gonçalo (MMSG), e contou com apresentações musicais, releituras de livros, sorteios de produtos de beleza, dramaturgia e oficina de turbantes africanos.
Mediado pela assistente social Natália Rocha, o seminário, que também fazia parte do calendário especial do Dia das Mulheres (8M), aludiu, em diferentes âmbitos, questões relacionadas ao papel histórico da mulher negra na sociedade brasileira, a importância do empoderamento feminino, os impactos do racismo estrutural e institucional, o combate às violações de direitos, e o enfrentamento às violências domésticas e sexuais contra as mulheres em seus diversos gêneros.
Participaram do evento: a coordenadora do Fórum das Mulheres Negras de Itaboraí, a pedagoga Eliane Arruda; a coordenadora de Saúde da População Negra em Itaboraí, assistente social Cláudia Bomfim; a coordenadora do Grupo Reflexivo para Mulheres, Luciléia de Souza Baptista; a gestora do MMSG, Marisa Chaves, além de escritoras da coletânea de histórias do livro ‘Escrevivências Periféricas, minha vida importa sim!’ e representantes de organizações sociais e instituições públicas.
As palestrantes também citaram o importante papel da mulher na estrutura econômica do país, as dificuldades de acessos ao emprego e os impactos das ações sociais na ascensão das mulheres negras na educação. Majoritariamente, as mulheres são maioria em quase todos os estados brasileiros. De acordo com censo IBGE (2022), o país tem uma população residente de 203.080.756. Deste total, 104.548.325 (51,5%) são mulheres e 98.532.431 (48,5%) são homens. O que significa que existe um excedente de 6.015.894 mulheres em relação ao número de homens.
‘Temos que combater a cultura do silenciamento das mulheres’
Marisa Chaves abriu o seminário discursando sobre a importância do resgate à memória e reconhecimento ao passado de luta das mulheres, que, até há pouco tempo, mesmo após conseguirem o direito ao voto, em 1932, se mantiveram firmes em outras ‘frentes’ de mobilização para deixar um legado de conquistas.
Segundo Chaves, no âmbito dos direitos civis, a mulher pode ser quem ela quiser, estar onde quiser, amar quem quiser, e avançar ocupando lugares de fala na sociedade, no trabalho, na educação, almejar cargos políticos, serem prefeitas, governadoras, administradoras de empresas e até presidentes de países. A gestora repudiou, porém, a existência da cultura do silenciamento da mulher, um ‘legado’ de opressão, deixado pelo patriarcado, que ainda precisa ser combatido.
“Estou há 35 anos no Movimento de Mulheres em São Gonçalo, que foi gerado durante a luta por direitos das mulheres negras. Tivemos muitos avanços, resultado do legado histórico de conquistas deixado por essas mulheres do passado. Contudo, ainda existe um ‘legado’ de opressão que precisa ser combatido. Temos que repudiar a cultura do silenciamento das mulheres, que é uma imposição do patriarcado. Esse silenciamento cria um circuito de incapacidade e se torna território fértil para violências psicológicas, sexuais e patrimoniais. Essa cultura aparece quando o homem não nos permite falar, alega que somos incapazes, fracas e tentam nos deixar em um lugar de subserviência”, alerta Marisa.
Feminismo negro e a luta contra o racismo estrutural
Já a pedagoga Eliane Arruda enfatizou o resgate do feminismo negro para combater as consequências nefastas do racismo estrutural, que ainda atravessam a vida dos negros como um todo, mas, segundo ela, atinge diretamente às mulheres. De acordo com Eliane, em parte, a emancipação das mulheres brancas precedeu às negras porque as últimas assumiram o lugar das primeiras no cuidado com a casa, na rotina do lar, e da família. As mulheres negras continuam sendo maioria nas periferias, em locais sem saneamento básico e em trabalhos domésticos.
“Precisamos, sim, falar sobre o feminismo negro. Historicamente, as mulheres negras são o esteio desse país, mas, ainda precisamos avançar. Ainda sofremos discriminação pela cor, corpo e cabelos. Quando entramos em uma loja somos olhadas com indiferença e preconceito. Somos vigiadas e assediadas. Só após os 45 anos de idade, quando passei a integrar o movimento negro, percebi que o protagonismo e autocuidado das mulheres passam pelo resgate da nossa história e o reconhecimento dos nossos direitos nos acessos ao emprego, à educação, aos cargos públicos”, ressalta Arruda.
‘Éramos uma referência estática’
Eliane, em seu discurso, lembrou que as mulheres negras, por muito tempo, foram referências estáticas. “Digo sempre que, apesar das convergências das pautas na luta feminista, as mulheres brancas se emanciparam primeiro porque as negras assumiram o lugar delas nos afazeres domésticos Éramos uma referência estática. Daí a importância de unirmos forças para combater o racismo estrutural e avançarmos em nossas conquistas”, ressalta a coordenadora do Fórum da Mulher Negra em Itaboraí, que adotou o uso do turbante, em sua rotina, porque, segundo ela, a indumentária representa uma ‘coroa’. “Sempre seremos rainhas”, completou.
‘Autocuidado não se resume apenas em beleza”
Mediadora do seminário, Natália Rocha pontuou a importância do autocuidado em suas diferentes abordagens. Para a assistente social, as formas de autocuidado transcendem os aspectos relacionados apenas à beleza ou a estética feminina.
“Autocuidado não se resume apenas em beleza. Existem outras formas da mulher se cuidar. Ela se cuida quando sabe dizer não, impor limites, tirar um momento para reflexão, ler um livro, e até separar um tempo para o ócio. São vários exemplos de autocuidado, além da estética ou exposição do corpo, que se descolam dessa imagem construída pela cultura machista ”, explica Rocha.
Cláudia Bomfim ressaltou que a saúde emocional e física da mulher passam pelo autocuidado. “Todos nós precisamos cuidar do corpo e da mente. Sou exemplo vivo disso. Já fui acometida por uma doença grave, por falta de autocuidado. Isso afetou minha rotina e o meu psicológico. Com apoio da família e de outras pessoas, consegui superar e passei a trabalhar para ajudar outras mulheres”, relatou. Em relação ao protagonismo da mulher negra, a assistente social falou que o combate ao racismo é pedagógico.
“Temos que lutar todos os dias contra o racismo, em casa, em locais públicos e na educação de nossos filhos. Se faz necessário eliminarmos, do nosso vocabulário, palavras com origem racista, como exemplo: a coisa vai ficar preta, criado mudo, denegrir, entre outras”, finaliza a coordenadora de Saúde da População Negra de Itaboraí.
No Brasil, 21% das mulheres negras são empregadas domésticas
De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Brasil, 21% das mulheres negras são empregadas domésticas e apenas 23% delas têm Carteira de Trabalho assinada – contra 12,5% das mulheres brancas que são empregadas domésticas, sendo que 30% delas têm registro em Carteira de Trabalho.
Outro dado alarmante é que 46,27% das mulheres negras nunca passaram por um exame clínico de mama – contra 28,73% de mulheres brancas que também nunca passaram pelo exame. Tanto mulheres negras quanto brancas que estão no mercado de trabalho têm escolaridade maior que a dos homens. Porém, isso não se reflete nos salários. A renda média mensal das mulheres negras no Brasil, segundo a última Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio, é de R$ 279,70 – contra R$ 554,60 para mulheres brancas, R$ 428,30 para homens negros e R$ 931,10 para homens brancos. (Fonte: Ipea)
Ações afirmativas se tornaram oportunidade de ascensão social para mulheres negras
Para a assistente social Luciléia Baptista, que publicou um artigo acadêmico sobre o tema, as ações afirmativas (sistema de cotas) se tornaram uma oportunidade de ascensão social para as mulheres negras. Contudo, segundo a pesquisadora, o racismo estrutural ainda coloca obstáculos que precisam ser superados. Baptista ressalta, por exemplo, a conquista do acesso à universidade que, durante muito tempo, lhes era negado devido às suas condições de subalternidade tanto de classe, quanto de raça.
“Trata-se de uma conquista que se deu, principalmente, com a implantação das políticas de ações afirmativas, porém, ainda assim, há um contingente de mulheres negras que não conseguiram permanecer e concluir a graduação por falta de condições socioeconômicas para tal. Com isso, permanece a desigualdade econômica mesmo com a efetivação de políticas sociais ou com acesso de algumas delas ao diploma de certificação. O mercado de trabalho é espaço privilegiado das dificuldades por elas enfrentadas, pois, nele, conseguimos perceber as desigualdades que são reproduzidas na sociedade”, reitera Baptista, coordenadora técnica do Neaca Tecendo Redes (Itaboraí), projeto capitaneado pelo Movimento de Mulheres em São Gonçalo (MMSG), com apoio da Petrobras, que conta com núcleos de atendimentos em São Gonçalo, Itaboraí e Duque de Caxias.
Após participarem da oficina de turbantes, mulheres desfilaram para o público sob a direção da coordenadora do curso
Em caso de ajuda, o MMSG disponibiliza seus serviços, de segunda à sexta-feira, das 9h às 17hs, nos endereços abaixo:
NEACA (SG)- Rua Rodrigues Fonseca, 201, Zé Garoto. (2606-5003/21 98464-2179)
NEACA (Itaboraí)- Rua Antônio Pinto, 277, Nova Cidade. (21 98900-4246).
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