Cerca de 90% dos casos de assédio em redes sociais e jogos on line correspondem a aliciamento e pornografia infantil, segundo a Unesco
Projeto Neaca Tecendo Redes atende em SG, Itaboraí e Caxias , crianças e adolescentes vítimas de assédios pela internet
Fotos: ASCOM/TR
O ‘grooming’, termo usado para designar o aliciamento de crianças e adolescentes através da internet, fecha a série de matérias especiais divulgadas no site do Movimento de Mulheres em São Gonçalo (MMSG), entre os dias 13 a 16 de maio, em alusão ao Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (18/05). Anteriormente, mostramos os agravos em consequência do abuso sexual, da prática do ‘sexting’ (expressão da sexualidade na internet) e os impactos da exploração sexual.
Os avanços tecnológicos e a internet trouxeram facilidades ao cotidiano das pessoas. No entanto, também abriram um pouco mais as ‘portas’ para os criminosos. Na esteira desses crimes cibernéticos, houve um aumento de casos de ‘grooming’: aliciamento de crianças e adolescentes nas redes sociais ou jogos ‘on line’ em troca de benefícios sexuais. Esses crimes virtuais têm atingido famílias e se tornaram um desafio para governos, autoridades policiais e especialistas em cibersegurança em todo o mundo. No Brasil, cerca de 24% de crianças e adolescentes já sofreram algum tipo de assédio pelas redes sociais, segundo pesquisa da Unesco.
De acordo com especialistas, nos casos de grooming, o aliciador costuma usar falsos perfis nas redes sociais ou em jogos virtuais para enganar as vítimas. Geralmente, o criminoso se aproveita de informações disponibilizadas nas redes sociais. A seguir, ele passa a manter contatos regulares até criar um vínculo de amizade e confiança, quando inicia as práticas de violações sexuais.
Cerca de 90% das crianças e adolescentes se conectam diariamente à internet por meio de diferentes dispositivos, dos quais 86% o fazem por meio de um smartphone. A falta de acompanhamento dos responsáveis e o tempo excessivo na internet elevam os riscos de assédios, manipulação, divulgação de imagens pornográficas, além de crimes como extorsão, abusos sexuais e estupros.
Perigo: contatos diários e emoções manipuladas
Para a psicóloga e coordenadora técnica do Núcleo Especial de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vítimas de Violência Doméstica e/ou Sexual (NEACA-SG), Cristiane Pereira Neves, a excessiva exposição à internet e as múltiplas possibilidades de contatos virtuais são aspectos facilitadores aos aliciadores.
“Geralmente, o aliciador usa um perfil falso e se apresenta com as características que vão agradar às vítimas. O criminoso faz contatos diários até ganhar a confiança da criança ou adolescente. Este processo pode durar semanas ou meses. É o período necessário para que a vítima se sinta confortável na relação e seja criado um vínculo de confiança”, explica a psicóloga.
Psicóloga Cristiane Pereira falou sobre mudanças de comportamentos e agravos às vítimas decorrentes dos aliciamentos
Fotos: ASCOM/TR
Mudanças de comportamento e consequências
De acordo com Cristiane Pereira, a maioria dos ofensores aliciam várias crianças ao mesmo tempo para garantir que, na eventualidade de alguma delas se sentir desconfortável e cessar o contacto, o processo seja bem sucedido. Há manipulação de emoções das vítimas, que, em alguns casos, sem saberem que estão sendo enganadas, mudam de comportamento em suas rotinas diárias para ‘agradar’ aos aliciadores.
“As crianças ou adolescentes mudam de comportamento para atender somente ao aliciador, que, naquele momento, é a pessoa que ela está ‘admirando’. Por conta dessas mudanças, as vítimas costumam enganar os pais ou responsáveis e podem até fugir de casa”, alerta Pereira.
Conforme a psicóloga, quando as vítimas descobrem que foram aliciadas ou sofrem violência física, abuso ou estupro, elas podem ficar presas em uma rede de exploração sexual e, na maioria dos casos, passam desenvolver quadros de depressão, tristeza profunda, comportamento autolesivo ou até atentam contra a própria vida.
“Elas se sentem humilhadas, em profunda tristeza. Preferem o isolamento social, querem deixar a escola, fogem da convivência com os amigos, e passam a ter dificuldade de fazer novos vínculos de confiança”, explica Neves. Nesse momento, se faz necessário buscar por um atendimento especializado e continuado para romper com o ciclo de violência e dirimir os agravos decorrentes das violações.
Assédio sexual e mercado paralelo de imagens pornográficas
Nos últimos 20 anos, devido às novas tecnologias digitais, o assédio sexual às crianças e adolescentes ganhou novos contornos com a chegada do mercado paralelo de vídeos e imagens pornográficos. Esse comércio ilegal, que utiliza fotografias ou filmagens, reproduz desde cenas eróticas provocativas até o sexo explícito.
Considerados novas expressões da violência, esses crimes cibernéticos ocorrem, sobretudo, quando aliciadores se aproveitam das vulnerabilidades de crianças e adolescentes que acessam à internet sem o devido acompanhamento dos responsáveis. Vale ressaltar que a pornografia é crime perante a lei e pune o explorador com até seis anos de reclusão.
Alerta para uso ‘deliberado’ da internet
Há 2 anos integrando o Núcleo Especial de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vítimas de Violência Doméstica e/ou Sexual (NEACA-Itaboraí), a assistente social Lívia Velasco alerta para os riscos do uso deliberado da internet entre crianças e adolescentes. Velasco ressalta que a utilização das redes sem o devido controle pode resultar em exploração sexual. Segundo a assistente social, normalmente o contato entre as vítimas e os abusadores acontecem por meio de redes sociais ou sites de jogos.
“A prática normalmente inicia-se de forma sutil através de uma abordagem ‘não-sexual’, com o objetivo de ganhar a confiança da vítima, através da ‘amizade estabelecida’, as conversas vão ganhando novos contornos de maneira a incentivar a criança ou adolescente a produzir e partilhar conteúdos íntimos em forma de desafios e brincadeiras. O abusador envolve a vítima até conseguir fotos, vídeos e, em alguns casos, até mesmo o contato físico através de encontros presenciais. Após conseguir os conteúdos, ele pode iniciar outros abusos dentre eles a extorsão virtual ‘sextorsão/sextortion’, onde, através de chantagens e ameaças, pode conseguir dinheiro ou outras formas de ganhos ameaçando a divulgação de conteúdos”, explica Velasco.
“A prática normalmente inicia-se de forma sutil através de uma abordagem ‘não-sexual’, com o objetivo de ganhar a confiança da vítima, através da amizade estabelecida", alerta Velasco.
As medidas preventivas seriam: conscientizar crianças e adolescentes sobre os perigos do grooming e a importância de não compartilhar informações pessoais com estranhos online; acompanhar as atividades online dos filhos e estabelecer limites saudáveis para o uso da internet; e encorajar a denúncia de casos de grooming às autoridades competentes.
Psicopedagoga Elisabeth Lourenço aponta o resgate da ludicidade como forma de prevenção aos assédios na internet
Fotos: ASCOM/TR
Orientação, prevenção e participação
Para a psicopedagoga do Núcleo Especial de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vítimas de Violência Doméstica e/ou Sexual (NEACA-SG), Elisabeth Lourenço, a despeito das medidas sanitárias necessárias, o período pandêmico foi determinante para potencializar o uso indiscriminado da internet, aumentando os acessos a jogos e relacionamentos virtuais. Em 2023, houve um aumento de 77% dos casos de aliciamentos e abusos sexuais na internet.
Lourenço atribuiu o aumento de casos de crimes ao uso deliberado das redes sociais e, sobretudo, à falta de orientação e participação de pais/responsáveis no desenvolvimento de atividades lúdicas e cognitivas com seus filhos. A técnica ressalta que, embora reconheça a importância das novas tecnologias, existe um universo de possibilidades fora das ferramentas digitais que precisam ser resgatados.
“Na pandemia houve a necessidade de reclusão das famílias. Nesse período, os pais tiveram que trabalhar usando a internet. Contudo, o fato de estarem em casa, em muitos casos, os tornaram distantes dos filhos. Acredito que houve enfraquecimento dos laços familiares, pois naturalizaram o fato de crianças e adolescentes ficarem isolados em seus quartos navegando na internet e se relacionando virtualmente sem nenhum acompanhamento”, explica Lourenço.
Em seus atendimentos, a psicopedagoga procura trabalhar a desconstrução da ideia hegemônica sobre o uso do aparelho celular.
“Precisamos resgatar a ludicidade dos jogos de tabuleiro, dos brinquedos, da leitura e das brincadeiras de roda. Não negamos a importância da tecnologia, mas existe o lúdico fora do aparelho celular. Acredito que precisamos valorizar o brincar como forma de prevenção a esses crimes cibernéticos. Contudo, família, escola e instituições precisam estar integrados nesse processo de orientação, prevenção e participação”, complementa Elisabeth.
Brasil está em 6º lugar em casos de assédios na América Latina
Segundo relatório da UNESCO, o México é o país com mais casos de assédios na internet na América Latina, seguido pela Argentina. O Brasil está em 6º lugar. Alguns dados são alarmantes: quase 80% das vítimas são meninas, e 86,7% dos casos de assédio correspondem a aliciamento e pornografia infantil. Os smartphones são os dispositivos mais utilizados, e neles, o aplicativo ao qual mais recorrem os agressores é o WhatsApp, em 74,3% dos casos. Os restantes 25,7% estão distribuídos, nesta ordem, pelo Instagram, Facebook, Twitter, Zoom e Telegram.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 241-D, criminaliza a conduta de aliciar, assediar, instigar ou constranger crianças, com o intuito de cometer crimes sexuais. Além disso, o Código Penal, em seus artigos 217-A e 218-B, trata dos crimes de estupro de vulnerável e de facilitação de prostituição ou exploração sexual de crianças e adolescentes. A Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/2012) criminaliza a invasão de dispositivos eletrônicos e a divulgação não autorizada de imagens íntimas. Vale destacar que o grooming é um crime que pode render mais de 10 anos de prisão para o adulto que aliciar, instigar ou constranger o menor em troca de benefícios sexuais.
Atendimentos às vítimas de abusos e violências domésticas em três municípios
O projeto NEACA Tecendo Redes, iniciado em 2024, com a parceria da Petrobras, atende demandas relativas às violências contra crianças e adolescentes. O projeto abrange os municípios de São Gonçalo, Duque de Caxias e Itaboraí e tem como objetivo contribuir para a promoção, prevenção e garantia dos direitos humanos de mulheres, crianças, adolescentes e jovens (até 29 anos).
Em caso de ajuda, as denúncias de aliciamentos sexuais pela internet podem ser repassadas ao Disque 100 (canal do Governo Federal) ou ao MMSG, que disponibiliza seus serviços, de segunda à sexta-feira, das 9h às 17hs, nos endereços e telefones abaixo:
NEACA (SG)- Rua Rodrigues Fonseca, 201, Zé Garoto. (2606-5003/21 98464-2179)
NEACA (Itaboraí)- Rua Antônio Pinto, 277, Nova Cidade. (21 98900-4246).
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