O ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente é um grande marco nacional dos direitos e proteção à infância e juventude, porque além de não serem sujeitos de direitos, crianças e adolescentes não eram considerados cidadãos. Eram explorados, violentados, oprimidos e maltratados. Na década de 1990, com o advento do Estatuto, também foram criados vários órgãos para a efetiva implementação do sistema de proteção: Conselhos Tutelares, Delegacias da Criança e do Adolescente, Varas da Infância e Juventude e os Conselhos de Direitos da Criança. Com a mudança de paradigma que trouxe o ECA, as crianças e os adolescentes passaram a ser absoluta prioridade, além de estarem inseridos na condição de pessoas em fase peculiar de desenvolvimento, ampliando políticas e leis de proteção que verdadeiramente fossem efetivas.
Dessa forma, foram sendo implementadas várias outras Leis ao longo dos anos com o intuito de complementar o Estatuto. A passagem do século XX para o século XXI trouxe muitos avanços no trato da proteção à infância e juventude. Logo no início dos anos 2000, mais precisamente em 2003, o Governo assumiu o Disque 100 - Disque Direitos Humanos, da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos - para o recebimento de denúncias, que foi criado em 1997 por organizações não governamentais que atuavam na promoção de direitos da infância e juventude. Em 2007, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 11.523, instituindo a Semana Nacional de Prevenção às Violências na Primeira Infância que vai de 12 à 18 de outubro, devendo haver ações públicas e privadas de visibilidade e mobilização para a importância da Primeira Infância para a cultura de paz. Outra lei importante de ser lembrada é a Lei nº 12.650/2012, a qual aponta que o prazo de prescrição de abuso sexual de crianças e adolescentes seja contado a partir da data em que a vítima completa dezoito anos, ampliando o tempo de denúncia dos supostos abusadores. Esta lei foi batizada como Joanna Maranhão, em homenagem à nadadora que denunciou seu treinador por abuso sexual sofrido quando tinha 9 anos.
Dois anos depois, foi sancionada a Lei nº 13.010/2014, Lei Menino Bernardo ou Lei da Palmada, que proíbe o uso de castigos físicos, morais ou tratamento violento contra crianças e adolescentes, alterando o ECA e estimulando a educação não violenta, visto que o uso da violência como correção era amplamente encorajado pelas políticas de “proteção” anteriores. A lei foi sancionada em homenagem a Bernardo Boldrini, que foi assassinado por overdose de medicamentos quando ainda tinha 11 anos pelo pai e pela madrasta. Em 8 de março de 2016, foi sancionada a Lei 13.257, o Marco Legal da Primeira Infância, que altera o ECA e dispõe das políticas públicas para a Primeira Infância, assinalando como primordial o direito de brincar, direito a ter um cuidador em casa nos primeiros meses de vida, garantindo a licença maternidade e paternidade, direito de ter profissionais especializados na primeira infância, dentre outros.
O Marco Legal da primeira infância demarca um grande avanço, pois se antes a infância era considerada um período de imaturidade física e emocional e de preparação para o futuro, agora existe uma lei que assegura o direito da criança de ser criança desde a primeira infância.
No ano de 2017, foi sancionada a Lei 13.431/17, que estabelece o Sistema de Garantia de Direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, além de criar mecanismos para preveni-la. Em 2019, foi promulgado o Projeto de Lei 1698/19, que torna obrigatória a notificação de violência contra crianças e adolescentes aos conselhos tutelares, sendo a violência autoprovocada ou não. Recentemente, foi sancionada a Lei Henry Borel de nº 14.344 de 24 de maio de 2022, que torna crime hediondo[1] o homicídio contra crianças menores de 14 anos e estabelece medidas protetivas nos casos de violência doméstica contra crianças e adolescentes. A lei homenageia o menino Henry, de 4 anos, que foi brutalmente assassinado por espancamento no apartamento em que morava com sua mãe e seu padrasto em 2021.
O MARCO LEGAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA (Lei nº 13.257), promulgado em 08 de Março de 2016, tornou-se uma lei de referência para a questão da primeira infância no Brasil (período que abrange de 0 a 06 anos de idade), produzindo alterações significativas no ordenamento jurídico. Teve reflexos principalmente no ECA, no Direito do Trabalho e no Direito Processual Penal, provocando avanços na garantia dos direitos de crianças pequenas e lançando luz sobre a importância da proteção nessa primeira fase da vida e da promoção do desenvolvimento infantil. Como bem afirma a Rede Nacional pela Primeira Infância, o Marco Legal da Primeira Infância expressa o que há de mais avançado
[...] na formulação e na gestão de políticas públicas pela primeira infância; nas concepções sobre a criança nas dimensões da individualidade e da cidadania; nas indicações das ciências sobre o desenvolvimento infantil e a aprendizagem nos primeiros anos de vida; na incorporação da prática profissional do atendimento a bebês e crianças pequenas; e na aplicação dos compromissos internacionais e nacionais sobre os direitos da criança. (Rede Nacional pela Primeira Infância, 2020)
Dessa forma, o Marco Legal cumpre papel fundamental no estabelecimento de diretrizes que asseguram à criança sua prioridade absoluta, bem como a integralidade de seus direitos. Entre as conquistas proporcionadas pela Lei, podemos destacar:
● O direito ao brincar;
● A priorização da qualificação dos profissionais que atuam diante das especificidades da primeira infância;
● O reforço ao atendimento domiciliar, especialmente em situações de vulnerabilidade;
● A ampliação da licença paternidade;
● O direito à participação de crianças na formulação de políticas públicas;
● A equidade entre mães, pais e demais cuidadores na garantia da proteção e dos cuidados às crianças;
● A atenção especial e proteção às mães que optam por entregar seus filhos para adoção e às gestantes em privação de liberdade;
● A valorização do diálogo com as famílias, visando o fortalecimento familiar;
● A expansão das vagas na educação infantil de primeiríssima infância (0 a 3 anos);
● A articulação intersetorial;
● A valorização da diversidade de infâncias no Brasil.
Ademais, estabelece áreas prioritárias para as políticas públicas voltadas à primeira infância, sendo estas: saúde, alimentação e nutrição, educação infantil, convívio familiar e comunitário, assistência social à família da criança, cultura, o brincar e o lazer, espaço e meio ambiente, proteção frente a todas as formas de violência e à pressão consumista, prevenção de acidentes e proteção contra a exposição precoce da criança à comunicação mercadológica. Entretanto, entende-se que para alcançar o cuidado integral e integrado das crianças, é preciso também cuidar de quem as cuida, dando atenção prioritária, por exemplo, às famílias em situação de vulnerabilidades ou direitos violados, bem como àquelas compostas por crianças com deficiência. Também podemos citar, no campo das condições favoráveis ao bebê e à criança preconizadas pelo Marco Legal da Primeira Infância, os exames pré-natais, o parto humanizado (com restrição a cesarianas), o direito a acompanhante no pré-natal, no parto e no pós-parto, o banco de leite humano, entre outras medidas.
Nesse sentido, o Marco Legal da Primeira Infância reforça a relevância da relação do bebê com seus primeiros cuidadores, enfatizando a essencialidade do afeto, da comunicação, das brincadeiras e da proteção. Concomitantemente, lança luz sobre a importância da constituição de redes intersetoriais e ações integradas para efetivo cuidado integral da criança, respeitando e valorizando as diversas infâncias no Brasil, circunscritas às suas singularidades e seus ritmos de desenvolvimento.
Diante desta crescente compreensão acerca da importância vital dos primeiros anos de vida, o Projeto Tecendo Redes na Primeira Infância caminha em congruência com a garantia de um crescimento saudável e livre de violências, do mesmo modo que visa fortalecer o princípio da prioridade absoluta de crianças, em especial as de zero a seis anos. Atuando de forma interdisciplinar e intersetorial, em São Gonçalo e Itaboraí, o trabalho especializado desenvolvido pelo Tecendo Redes na Primeira Infância objetiva incidir não só na reparação dos agravos decorrentes de situações de violências com crianças na primeira infância, mas também na prevenção e proteção contra tais vivências. O desafio é grande, considerando a extensão de ambos os municípios onde o Projeto atua, bem como a realidade de subnotificação dos casos de violências contra crianças, especialmente a violência sexual.
Dessa forma, à luz do Marco Legal da Primeira Infância, compreende-se que para alcançarmos a atenção integral à criança e seu desenvolvimento, desde a prevenção ao tratamento, é preciso constituir redes integradas de profissionais, serviços de saúde, cultura, assistência social, educação, segurança, entre outros que estão presentes no dia a dia desse público e de suas famílias, visando materializar e fortalecer o Sistema de Garantia de Direitos previsto na legislação sobre a infância.
[1] Em Direito Penal, é um adjetivo que qualifica o crime que, por sua natureza, causa repulsa. O crime hediondo é inafiançável e insuscetível de graça, indulto ou anistia, fiança e liberdade provisória.
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