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COMPREENDER AS INTERSECÇÕES DOS INDICADORES SOCIAIS: RECORTES DE GÊNERO, RAÇA/COR, TERRITÓRIO


Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2020 para 2021 observa-se um discreto aumento no número de registros de estupro, que passou de 14.744 para 14.921. Já no que tange ao estupro de vulnerável, este número sobe de 43.427 para 45.994, sendo que, destes, 35.735, ou seja, 61,3%, foram cometidos contra meninas menores de 13 anos (um total de 35.735 vítimas) . Aponta ainda que o local da violência também permanece o mesmo: 76,5% dos estupros acontecem dentro de casa. E chama a atenção para a escola como elemento estratégico fundamental para o enfrentamento do estupro de vulnerável. Isso nos parece muito claro diante da informação que essa violência é preponderantemente intrafamiliar e ocorre dentro de casa.

O Anuário também provoca a reflexão quanto à cor/raça, pois a maioria dos registros são de meninas brancas (49,7%), seguido de negras (49,4%), amarelas (0,5%) e indígenas (0,4%). Problematiza este dado das meninas negras serem menos violadas que brancas, apresentando dados do estudo “Percepções sobre direito ao aborto em caso de estupro”, realizado e publicado pelos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão neste ano, o qual entrevistou 2 mil pessoas, das quais 57% acreditavam que mulheres e meninas negras são as maiores vítimas de violência sexual no Brasil. E se não estamos diante de um dado que nos fala de uma maior subnotificação de estupro de vulnerável de meninas negras em relação as brancas.

Traz importante contribuição em relação à Primeira Infância e o recorte de gênero e número de estupros de vulnerável. Observa o Anuário que em relação ao sexo da vítima, 85,5% são meninas, mas meninos também são vítimas. Interessante aqui observar que o número de registros aumenta conforme a menina vai crescendo, já no caso dos meninos, o número de registros aumenta até os 6 anos (com pico entre 4 e 6) e depois começa um processo de queda. Penso aqui em duas hipóteses: a primeira é de que, em um país machista como o nosso, os meninos vão sendo mais respeitados conforme crescem e deixam de ser objeto desta violência; a segunda é de que, justamente por sermos um país machista, os meninos, por constrangimento, denunciam ainda menos que as meninas as violências sexuais que sofrem.


Em seguida aos dados de estupros de vulnerável, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública através do 13º Anuário aponta o maus-tratos como o segundo maior crime cometido contra crianças e adolescentes e o que mais acontece nas faixas etárias da Primeira Infância. Com isso, “o crime de maus-tratos tem, na curva etárias das vítimas, o seu pico entre crianças de 6 anos. Ou seja, trata-se de um crime que atinge mais crianças de faixas etárias mais baixas” .


No total de vítimas de 0 a 9 anos, 49% são do sexo feminino e 50,9% do sexo masculino. Ou seja, as vítimas são igualmente distribuídas entre os sexos. No entanto, ao desagregar essa informação por faixa etária, é possível verificar que nas faixas de 0 a 4 e 5 a 9 anos, a maior parte das vítimas é do sexo masculino, cenário que se inverte nas faixas de 10 a 14 anos e 15 a 19 anos, em que a maior parte das vítimas é do sexo feminino.


De acordo com essa fonte, o perfil das vítimas de maus-tratos é maior até 14 anos e são do sexo masculino, ainda que a distribuição em termos de sexo seja quase equivalente, se considerado o total de vítimas de 0 a 17 anos. Dentre os estados que informaram a raça/cor da vítima, o maior percentual de casos teve as crianças brancas como maioria das vítimas. No entanto, as distribuições variam de acordo com a faixa etária, o que é significativo para compreender o fenômeno. Ou seja, a depender da idade da criança em questão, os riscos a que estão expostas variam.


Estudos indicam que o estresse tóxico pode impactar a forma como o cérebro se organiza para dirigir o comportamento da pessoa e pode aumentar o risco de doenças físicas e mentais relacionadas ao estresse. A participação da criança desde a primeira infância nas ações que visem a enfrentar a violência intrafamiliar e suas consequências é uma estratégia fundamental para a construção de uma política efetiva. Essa participação começa no escutar e em levar em consideração as opiniões e os desejos da criança.


Com isso, torna-se relevante que a escuta ativa e sensível se dê para além da criança, pois a violência doméstica está embasada na violência de gênero e, possivelmente, as cuidadoras - mulheres e em sua maioria mães - também sofrem violências domésticas, e vice versa, ou seja, ao acolher mulheres vítimas de violências, é preciso dar atenção à possibilidade de os filhos também estarem sofrendo violências, principalmente a psicológica - quando assistem as violências sofridas por suas genitoras. Esta realidade pode ser identificada constantemente, mas não foi possível verificar junto aos dados estatísticos esse recorte e cuidado.


Assim, em relação à violência de gênero contra a mulher, na Lei Maria da Penha 11.340/06, destaca-se que a violência perpetrada contra a mulher se encontra fundamentada na condição feminina. Entendendo que historicamente a mulher sempre esteve no lugar de dominação masculina sendo inferiorizada exclusivamente por uma questão de gênero. Conceitualizando a Lei Maria da Penha, em seu artigo 5º diz que: “Configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, de acordo com as seguintes situações:


I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.


Torna-se relevante aqui considerarmos a VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA contra as crianças na Primeira Infância e contra as mulheres. De acordo com a definição do artigo 7º, inciso II da Lei Maria da Penha “A violência psicológica (é) entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.


Dentre os outros tipos de violência, a psicológica pode ser a mais difícil de ser identificada pela vítima, tanto criança quanto adulta e cuidadora, pois em muitos casos ela pode ocorrer de forma bem sutil em situações corriqueiras, e também pode acontecer de forma severa e correlacionada a outros tipos de violência. O infográfico abaixo, do Dossiê Mulher 2021, mostra que crianças presenciam os feminicídios de suas genitoras. Outro dado que merece atenção das políticas públicas.


Outra questão importante a ser abordada aqui, tendo em vista os recortes dos dados levantados, é a do entrelaçamento do racismo e os seus impactos no desenvolvimento infantil , principalmente quando constatamos que a maioria das crianças violentadas são negras.


Prevenir violências é principalmente pensar no conceito da Interseccionalidade, ou seja, nas intersecções entre os marcadores sociais de raça, cor, gênero, território, entre outros, e refletirmos sobre quem são os mais afetados com as situações de violências domésticas e sexuais e porque. Assim, constatamos que não há possibilidade da população vivenciar essas situações da mesma forma, com os mesmos desafios ou até com as mesmas vias de acesso à proteção e cuidado necessários.


Quando nos deparamos com indicadores sobre a questão social no Brasil observamos que as mulheres negras estão na base da pirâmide social, historicamente. São a parcela mais pobre da sociedade brasileira e, consequentemente, desprovidas de direitos fundamentais como habitação, saúde, alimentação, educação e emprego. São essas mulheres as mais vulneráveis a toda forma de violência e seus filhos são frutos dessas desigualdades estruturais que se interseccionam com as desigualdades de classe e raça, gênero, sexualidade, idade, etnia, territorialidade, status de cidadania. Todos esses marcadores impactam no desenvolvimento infantil, porém no entrelaçamento do racismo, principalmente quando constatamos em dados estatísticos que as crianças mais vulneráveis a todo tipo de violência são as crianças negras .

O racismo presente cotidianamente nesta sociedade se desvela em muitos momentos de forma sutil nas crianças negras e se expressa cruelmente gerando dor, raiva e negação da sua própria identidade. Como por exemplo ao fazer comentários negativos sobre o cabelo e traços fenótipos da criança. “Vamos prender esse cabelo, porque ele está rebelde! ”;” Que pele russa!”. São insultos racistas diários, que levam as crianças e pessoas negras viverem como se ainda estivessem vivendo no tempo da escravidão. Há uma atemporalidade que impacta a forma desses sujeitos se identificarem e se movimentarem no mundo. Como diz Grada Kilomba sobre humanidade, semelhança e dessemelhança, o sujeito negro é construído através de uma visão de “autoridade”, onde lhe é destinado o lugar de “não sujeito”. O direito de forjar ideias de si e para si é negado. O racismo cotidiano, por sua vez, é discutido com detalhe por Kilomba que analisa que o sujeito negro é apreendido como “o outro”, sob aspectos de infantilização, primitivização, incivilização, animalização e erotização, experiências habituais, como destaca a autora, que se repetem “incessantemente ao longo da biografia de alguém” ((KILOMBA, 2019: p.80). A sua interpretação parece muito mais adequada para explicar a permanência do racismo e preconceito racial nas sociedades ocidentais a despeito da abolição da escravatura e da descolonização.


Isso se resvala nas práticas profissionais, educativas e de cuidados cotidiano com as crianças de não haver representatividade na história contada em sala de aula, nos brinquedos que utiliza, o que impacta diretamente a autoestima e se associa com outras violências as quais algumas crianças, principalmente as negras, já vivenciam no seu território, no próprio lar.


Para Gomes, compreender que a identidade negra se constrói gradativamente, assim, como em outros processos identitários, num processo que envolve inúmeras variáveis, causas e efeitos, desde as primeiras relações estabelecidas no grupo social mais íntimo, em que os contatos pessoais se estabelecem permeados de sanções e afetividade e no qual se elaboram os primeiros ensaios de uma futura visão de mundo, isso tem valor. Geralmente tal processo se inicia na família e vai criando ramificações e desdobramentos a partir das outras relações que o sujeito estabelece.


“A identidade negra é entendida, aqui, como uma construção social, histórica, cultural e plural. Implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/racial sobre si mesmos, a partir da relação com o outro. Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina ao negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros”. (Gomes, 2003 p. 171).



Para mudar este cenário, as crianças devem ser fortalecidas de modo que não se fragilizem diante das discriminações e preconceitos existentes na sociedade. Entender que a cor da sua pele e seu cabelo são características genéticas, que não significam um determinismo intelectual ou moral. Independentemente dos fenótipos, todos são agentes transformadores de sua própria história. Pensando nas reflexões da educadora Azoilda Trindade, para quem a capacidade de afetar e ser afetado pelo outro, pelo entorno, é fundamental para um processo educativo que se propõe voltado para a compreensão das respostas das diferenças que nos constituem como sujeitos do cotidiano. O afetar e ser afetado, que ocorre a todo momento, num mundo que não é estático e imutável, não pode ser visto como irrelevante. Como, diante da dinâmica desse movimento circular, podemos, enfatiza Trindade, subestimar ou negligenciar os aspectos afetivos do ser humano, suas emoções, sentimentos, afetos e desejos?



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